terça-feira, 26 de agosto de 2008

Da Vaidade Dos Artistas


Creio que os artistas ignoram muitas vezes o que de melhor sabem fazer porque são muito vaidosos e dirigiram sua vista para alguma coisa de mais altivo, desdenhando essas pequenas plantas que, novas, raras e belas, crescem em seu solo com real perfeição. Julgam superficialidade o que há de verdadeiramente bom em seu próprio jardim, em seu próprio vinhedo e seu amor não é da mesma ordem de sua inteligência. Aí está um músico que, mais que qualquer outro, se tornou mestre na arte de encontrar tonalidades para exprimir os sofrimentos, as opressões e as torturas da alma e também para dar voz ao muntismo desolado do animal. Niguém o iguala para conferir uma coloração de fim de outono, a felicidade indivizivelmente comovedora de um último, absolutamente último e inteiramente efêmero prazer, ele conhece o tom para essas minúcias da alma, secretas e inquietantes, em que causa e efeito parecem se separar, em que cada instante alguma coisa pode surgir do "nada". Melhor que ninguém tira o que quer do mais profundo da felicidade humana e, de alguma forma, de sua taça já vazia, onde as gotas mais amargas acabam por se confudir com as mais doces.
Ele conhece essas oscilações cansadas da alma que não sabe mais saltar nem voar, nem mesmo caminhar; tem o olhar receoso da dor escondida, da compreenção que não consola, dos adeuses sem confissões; sim, como Orfeu de todas as misérias íntimas, ele ultrapassa qualquer outro e acrescentou com isso a arte das coisas que, até aqui, pareciam inexprimíveis e mesmo indignas da arte - e que, sobretudo com palavras, só podiam ser postas em fuga e não aprendidas - mesmo todos esses elementos infinitamente pequenos de natureza anfíbia - pois na arte do infinitamente pequeno se tornou senhor. Mas não quer saber disso! Pelo contrário, seu carater prefere os grandes murais, a audaciosa pintura mural! Não percebe que seu espírito tem outro gosto e outro pendor, que preferiria se refugiar tranquilamente nos recantos de casas em ruínas:- é ali que escondido, escondido de si próprio, compõe suas verdadeiras obras-primas, que são sempre muito curtas, um simples compasso muitas vezes - então somente é superior, absolutamente grande, perfeito. - Mas ele não sabe! É demasiado vaidoso para sabê-lo.


Nietzsche
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Um comentário:

Anônimo disse...

O que comentar após tão arrebatadora ode? Repouso meus pensamentos nos acordes executados nas partituras perdidas de Orfeu e sobretudo na diáfana brisa que alcança e se regozija em meu espírito pagão e ávido de filosofia.
Fiel espelho meu...